|
A
harpa e o beijo
Eustáquio Gomes
Florivaldo Chaves, meu vizinho do outro lado da rua, na vivacidade de seus
79 anos, faz ar de mistério ao me chamar:
— Venha ver uma coisa.
Leva-me para dentro, envereda num dos aposentos e volta com um livro na
mão. Não é bem um livro, mas uma bela encadernação
em formato revista, a capa grossa imitando percalina. E não é
bem uma revista, mas uma coleção de páginas de revista
cuidadosamente seccionadas e costuradas. Por fim compreendo que é
uma coleção completa das 215 crônicas que publiquei
entre maio de 1997 e junho de 2001, e que ele mandara encadernar. Fico
comovido por ele se dar esse trabalho: o de preservar material tão
perecível. Eu próprio não disponho de todos os números,
isto é, não dispunha, pois aí veio a surpresa seguinte:
— É seu o volume. Mandei encadernar para você.
Esse gesto bondosíssimo de seu Chaves me apanhou pelo coração
e arrastou-me 30 anos atrás, pois foi pela mão da crônica
que entrei na vida deste jornal e nunca mais saí. É a relação
mais duradoura de minha vida, salvo aquela que tenho tido com minha mãe.
Pois foi num dia de dezembro de 1971 que eu subi à antiga redação
da rua Conceição 124 e perguntei quem era o chefe. Era Carlos
Tontoli e estava em reunião com o gerente. Não sei de onde
me veio a coragem para descer dois andares, passar pela sala da secretária
(que tinha se ausentado um instante) e entrar sem pedir licença
no gabinete onde conversavam, de pernas esticadas, os dois homens que diariamente
botavam o jornal na rua.
— Quero ser jornalista — foi nestes termos que me apresentei, eu, um franzino
rapazola que ainda aquela tarde tinha carregado caixas de cerveja para
o depósito da lanchonete onde trabalhava.
Divertiram-se muito ao ouvir aquilo.
— E por que quer ser uma coisa dessas? — perguntou-me Tontoli.
— Porque escrever é a única coisa que sei fazer direito.
— Sabe mesmo?
Não sabia, mas achava que sabia. Em todo caso, escrevia longos poemas
nos fundos do bar e dizia a mim mesmo ao percorrer as notícias do
jornal: “Isso eu posso fazer”. Depois tudo aconteceu muito rápido.
Tontoli se apiedou de mim e mandou que voltasse na semana seguinte. Quando
me apresentei novamente, ele adiou por mais uma semana o meu futuro. Na
terceira vez que aconteceu, pensei que estava testando minha obstinação
(qualidade que todo repórter deve ter, dizem) ou forçando
minha desistência. Claro que não desisti. Na vez seguinte
surpreendi-o com um texto que era uma espécie de crônica,
uma descrição lírica do comércio de frutas
e verduras que se armava toda manhã em torno do Mercado Municipal.
Ele mal levantou a cabeça da mesa:
— Está bem. Deixa aí. Vou ver.
No outro dia, quando abri o jornal, levei um susto. A crônica se
estendia inteira, em letra suave, alegre como uma estrada bem pavimentada,
na segunda página do primeiro caderno. Parecia a estrada do meu
destino. Meus companheiros de trabalho se recusaram a acreditar naquilo.
— Tu tá brincando, deve ser outra pessoa — disse um.
— Tem muita gente de nome igual no mundo — menoscabou o outro.
Mas o fato é que, tendo dormido balconista, acordei redator de jornal.
Fui admitido como estagiário e dois meses depois era repórter
de carteira assinada. Apesar de tudo nunca fui um grande repórter,
talvez nem mesmo um bom repórter. Era dado a divagações
e contemplações, esquecia o principal e preferia os temas
leves. Num dia sem assunto (a cidade era tranqüila naquele tempo)
cheguei a somar a extensão dos cabos dos elevadores do Palácio
dos Jequitibás, constatando que, colocados em linha, fariam uma
viagem de ida e volta a Tupã. Isso para mim era notícia.
Minha maior proeza como jornalista foi arrebentar a porta do velho Hotel
Terminus ao sair de uma entrevista com um general; não por raiva
ou protesto contra a ditadura, mas porque escorreguei no tapete da recepção
e voei contra a porta de vidro. A partir desse dia pude me jactar de me
haver ferido no exercício da profissão.
Nessa altura arranjei uma namorada, uma garota pequena, tímida e
de pele cor de jambo. Chamava-se Vera. Um domingo em que passeávamos
de mãos dadas pelo Jardim Carlos Gomes, Vera me perguntou se era
verdade que as palmeiras que circundam a praça formavam realmente
o desenho de uma harpa. Eu não sabia disso, mas prometi averiguar.
E cometi o desplante de propor ao jornal um sobrevôo da cidade, em
avião teco-teco, no dia do desfile de 7 de Setembro. “Uma reportagem
cívica”, eu disse, quando meu propósito, bem outro, era de
natureza amorosa. Em todo caso a matéria saiu graciosa, em quatro
colunas de texto com um poema no centro. O único sobressalto foi
que, sendo o vôo uma gentileza do aeroclube, tínhamos de atirar
papel picado lá de cima. Quase desmaiei quando vi que, para facilitar
esse trabalho, haviam retirado as portas da avioneta. Para piorar as coisas,
o cinto de segurança não fechava direito. Era meu primeiro
vôo e poderia ter sido o último. Mas como o amor faz maravilhas,
sobrevivi bem.
E pude comprovar que as palmeiras do Jardim Carlos Gomes formam realmente
uma verde e farfalhante harpa. No domingo em que saiu a reportagem, levei
o jornal a Vera e ganhei um enorme beijo.
Continua me beijando até hoje. |
|