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Os sapatos de Etienne
Eustáquio Gomes
Etienne Samain, o antropólogo da Unicamp que resgatou a cultura
dos índios kamaiurá, como antes já o fizera com os
urubu-kaapor, pois o muitíssimo bem casado Etienne, belga de nascimento,
brasileiro de coração, saibam todos, já foi padre.
E dizem que muito bom padre ele não esconde isso se é
que havia maus padres na fria e chuvosa Louvaine naquele ano santo de 1963.
Escolho 1963 não porque marcou o clímax da interminável
guerra lingüística entre flamengos e francófonos, da
qual Louvaine era uma espécie de epicentro. Mas porque, como regente
encarregado do pessoal francês e latino que aportava no Collegium
Sancti Spiritus, Etienne protagonizou nessa época uma história
digna de figurar num conto de Charles Dickens.
Pelo Sancti Spiritus passavam
padres do mundo inteiro, para atualizar conhecimentos ou para fortalecer
sua fé. Assim foi que um dia chegou um hóspede raro, raríssimo
o arcebispo de um país comunista. Novo ainda, rosto bem talhado,
o visitante trazia nos olhos inteligentes a sombra das sucessivas guerras
e invasões que haviam sangrado seu país. De pelo menos uma
ele havia participado, quando ainda era civil. Mas agora, mesmo sendo um
ícone da resistência cristã num país dilacerado
física e espiritualmente, ele era sobretudo um cavalheiro, um homem
simples que andava de chapéu de pároco de aldeia e batina
preta comum, dispensando os broquéis do arcebispado.
E que cabeça! Dirigia-se aos franceses em francês, aos alemães
em alemão, aos italianos em italiano, aos americanos em inglês.
Se sua permanência em Louvaine fosse mais longa, era certo que logo
estaria falando também em flamengo, para que não pairassem
dúvidas sobre sua neutralidade no imbróglio lingüístico
da região.
Como o quarto de Etienne ficasse colado ao quarto do hóspede, não
faltou oportunidade de manterem, mais de uma vez, boa e viva conversação.
Fizeram ótima camaradagem. O visitante chegou a elogiar o modo convincente
como Etienne celebrava a Eucaristia. Em outra ocasião assegurou-lhe
que a "igreja do silêncio", abafada pelo comunismo, constituía
na verdade o maior espetáculo de fé neste século.
Tudo conversa simples e amistosa que Etienne ia transportando para o diário
que mantinha nesse tempo o testemunho de uma época em que ainda
estava em paz com suas convicções.
No dia seguinte caiu um temporal daqueles. A certa altura, olhando pela
janela, Etienne viu entrar o arcebispo. Voltava de um passeio e estava
completamente encharcado, com lama dos pés às orelhas. Seus
sapatos, que não deviam ser de boa qualidade, botavam água
pelas laterais e tinham-se soltado na altura do bico. Pouco depois viu-o
entrar em seu próprio quarto e, como que experimentando a extensão
da fé de Etienne, indagar:
Pode me dizer qual o tamanho do seu pé?
Quarenta e dois.
O arcebispo sorriu ao constatar que calçavam o mesmo número.
Pode me emprestar um par de sapatos?
Com imenso prazer Etienne
colocou à frente dele dois pares (seus dois únicos pares
de sapatos) para que o arcebispo escolhesse o de seu agrado. O arcebispo
sentou-se na cama de Etienne e escolheu o mais novo, o de cadarços
Depois disso o destino traçou caminhos diferentes para eles. Primeiro
deu a Etienne um vicariato em Châteaulineau, depois uma cadeira de
professor no seminário de Tournai e, por fim, colocou coisas surpreendentes
em seu caminho: o Brasil, a paixão pelos índios e o desligamento
da Igreja. E também Godelieve, nome que em bom português significa
"amada de Deus", sua alegre e boa esposa.
Nunca mais voltou a ver pessoalmente o arcebispo, embora ouvisse falar
dele com freqüência cada vez maior, pois estava se tornando
uma pessoa proeminente. Em 1967 fizeram-no cardeal de Cracóvia e
em 1981, numa rua de Roma, sofreu um atentado a tiros. Já não
o chamavam pelo nome de antigamente, mas sim por um criptônimo escolhido
no topo de uma história de 305 papas.
Já vai longe o tempo em que, na pele de Karol Woytila, João
Paulo II parou em Louvaine por alguns dias e saiu de lá com um par
de sapatos novos, os sapatos de Etienne. Agora que ele volta ao Brasil
para uma nova contagem de seu rebanho, acho muito justo que Etienne vá
vê-lo e, chovendo ou não, possa dirigir-se a ele com toda
a liberdade que se deve aos bons camaradas:
Pode me dizer, Santidade, qual é o tamanho do seu pé?
Vão achar que Etienne ficou louco. Mas Karol Woytila certamente
vai se lembrar e entender. Nesse ponto, é bom esclarecer que, ao
emprestar os sapatos ao futuro Papa, Etienne desobrigou-o inteiramente
da devolução. Mas, mesmo assim, pode ser que Sua Santidade
descalce os sapatos na hora e os passe a Etienne, como uma retribuição
tardia. Espera-se que sejam de boa qualidade. |
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