|
Paisagem com neblina
Eustáquio Gomes
Chovia muito no dia em que meu pai morreu. Descemos, meu irmão e
eu, para vê-lo. Estava numa espécie de morgue na parte inferior
do hospital. Era um aposento baixo, quase tão baixo como um porão,
com as paredes úmidas por causa da chuva incessante. O corpo jazia
sobre uma maca, coberto só com um lençol branco, e parecia
dormir um profundo sono. O nariz tinha se tornado mais aquilino que antes.
Coitado do velho disse meu irmão.
E nem era tão velho assim respondi.
Tinha 64 anos quando morreu. Tinha 46 no dia em que, sob uma chuva assim,
ele me levou para o colégio de padres, em Luz. Sempre o associei
ao ciclo da chuva e do sol, pois nos grotões onde morávamos
era isso que importava. Gostava de olhar o céu e calcular o volume
de água que ia cair. Nesse dia a água caiu aos borbotões,
com breves intervalos de estio, mas o céu permaneceu sempre baixo,
esfumado e branco.
Nossa viagem se dividia em duas partes: primeiro um estirão de "jardineira"
até um lugar chamado Estalagem, pouso de tropeiros e mascates, onde
agora passava a rodovia que serpeava até Luz e, dizem, ia dar na
Bolívia. Parados na beira da estrada, ficamos esperando o ônibus
(este sim, de verdade) que nos levaria ao colégio. Quando recomeçou
a chover, meu pai apontou para uns tubulões que havia na beira da
estrada, deixados ali por operários de obras, e disse:
Vamos nos esconder dentro deles.
Escolhemos um com a boca voltada para a estrada, que era para não
sermos surpreendidos pela aproximação do ônibus. A
chuva engrossou, caiu uma neblina espessa sobre os morros, a estrada era
lama só. Achei engraçado meu pai ali comigo, acocorado dentro
do tubulão, rindo de si mesmo e da chuva, com uma espécie
de alegria infantil estampada no rosto comprido. Talvez a alegria viesse
do fato de que, sendo a chuva forte e caudalosa lá fora, estivéssemos
ali tão bem protegidos. A atmosfera lá dentro era cálida.
A certa altura ele tirou uma moeda do bolso e voltou-se para mim:
Guarda. É para dar sorte.
Aquilo me desconcertou. Primeiro porque eu sabia que meu pai era incapaz
de desperdiçar dinheiro, um níquel que fosse. Segundo porque
ele era um homem profundamente religioso e, no meu entender, constituía
um erro ele esperar mais de fetiches que da Providência. Mas pensei
que, naquela circunstância, ele tinha o direito de ser uma pessoa
diferente da que era, menos rígida, mais amena. Guardei a moeda
e me calei.
Em Luz, depois de me entregar aos cuidados dos padres, ele tomou um quarto
de pensão até a manhã seguinte. Como partiria de volta
bem cedo, fui autorizado, no fim da tarde, a ir me despedir dele. Encontrei-o
lendo um exemplar da Bíblia que encontrou na pensão. O livro
estava aberto numa altura que me permitiu calcular que era o Antigo Testamento
que ele lia. Preferia-o, de longe, ao Novo. Creio que se identificava mais
com as histórias dos velhos patriarcas.
Guardou a moeda? perguntou, dando-me um abraço, um dos poucos
que me lembro ter recebido dele.
Sim respondi.
Infelizmente nunca fui bom guardador de talismãs. Seja como for,
acho que a sorte não me faltou. A dele é que poderia ter
sido melhor. Quando veio para a cidade, na esteira da grande onda migratória
dos anos 60, seu mundo virou de cabeça para baixo. Foi como se o
tubulão rolasse. Uma coisa é ser camponês, outra é
ser porteiro de hotel. Nos últimos tempos, ele não andava
bem. Devia estar sofrendo de alguma doença que o foi consumindo
devagar, e acho que suspeitava disso, pois logo tratou de comprar um túmulo
a prestações. Certo dia, tendo-me encontrado com ele no centro
da cidade, vi-o tomando a direção oposta ao lugar aonde queria
ir.
Pai chamei-o, como no tempo da roça o caminho é por
ali.
Ora essa disse ele, e bateu a mão na testa, corrigindo a rota.
No hospital, depois que liberaram o corpo, fomos à recepção
para resgatar os pertences dele. Chinelos. Pijama. Um pente. Pouca coisa
mais. Já íamos saindo quando o funcionário nos chamou
de volta:
Ah, e tem isso aqui. Foi encontrada no bolso dele.
Era uma moeda pequena, humilde, testemunha silenciosa de sua viagem. A
última. |
|