O confessor

Eustáquio Gomes 


A meu pai, magro, seco, sério, bíblico, deu-lhe na veneta reconstruir a capela do povoado. Minha mãe exasperou-se: e a lavoura? A lavoura segue dando flor, ele respondeu. E entregou-se de corpo e alma, naqueles tempos de vaticana reforma, à tarefa de arrecadar fundos para comprar tijolo, telha, ripa, cimento, cal, pedra, uma pedra de mármore para o altar, bancos, um sino novo e até a paramentagem para quando, vez ou outra, viesse o padre. As pessoas davam o que podiam. Meu pai sonhava alto: na sua cabeça era certo que soavam os sinos de uma vasta catedral.

As paredes começaram a subir, o andaime foi montado, nós esperávamos a noite para escalar as travas e descortinar as casas embrulhadas na sombra com seus cubos de luz por onde vazava a claridade amarelada dos lampiões. Do rés do chão, alguém desafiou meu irmão menor a saltar para a terra. Era coisa de três metros e meio, parecia mais.

— Se pular, ganha este canivete.

Meu irmão hesitou, sentiu medo, criou coragem e jogou-se no vazio. Caiu sobre as quatro patas, como um gato, e não se levantou imediatamente. Depois os pés começaram a inchar e minha mãe, ralhosa, passou a madrugada preparando bacias d’água com salmoura e ungüentos. Eu estava assustado, era um dos que o tinham atiçado a saltar.

— Ele vai morrer?

— Morrer não, mas pode ficar sem os pés.

Sarou logo e as paredes terminaram de subir, foram rebocadas e pintadas de branco, sob o teto de duas águas. As telhas brilhavam de novas. Uma cruz foi afixada no alto. Num domingo chegou o sino: meu pai aplicou nele uma vigorosa badalada e aprovou o som. Juntou gente. Às pressas, improvisaram uma torre do lado de fora, espécie de jirau para pendurar o sino. Mas o que nos encantou mesmo foi o confessionário, casinha que semelhava um banheiro de quintal mas incomparavelmente mais bonito, a madeira trabalhada e a portinhola treliçava e protegida, por dentro, com uma cortininha preta. Entrei e mandei que Telma se ajoelhasse do lado de fora.

— Conta seus pecados.

— Não tenho pecado, ela respondeu.

Eu sabia que tinha: de noite, em torno das paredes da capela, ela se deixando bolinar pelos meninos. No dia em que veio Padre Clemente, baixo, gordote, italianado, eu me escondi atrás do confessionário, entre a parede e a maneira brunida, para ver se ela contava tudo. Contou só que tinha faltado à aula e roubado um ovo de galinha. Mais nada. Minha irmã Tereza confessou que tinha xingado nosso pai pelas costas. Preferiu ocultar que, semanas antes, botara fogo num rancho de sapé. E tive de rir baixinho quando Zico gaguejou numa tropelia de sílabas: “Padre, matei passarinho com bodoque”. Eu sabia que havia mais coisas. Passei a achar que a culpa em geral era maior. Por azar, fui descoberto. Houve confusão. Lá fora, as diversas pessoas me apertaram:

— O que escutou?

— Nada.

— Então o que fazia?

— Rezando.

Padre Clemente, informado, abandonou seu posto de escuta e me arrastou para o próprio campo do delito: “Venha confessar”. Comecei por negar o que tinha feito, mas quando senti que da portinhola soprava um ar de benignidade, abri-me.

— Fez ou não fez?

— Sim senhor, fiz.

— E por que mentiu?

— Prometi guardar segredo.

Menos que uma confissão: uma conversa. Notei curiosidade em Padre Clemente.

— Por que guardar segredo de uma mentira? Isso é mentir duas vezes.

— É que prometi guardar segredo dos pecados.

— Guardar segredo dos seus pecados?

— Não, dos pecados dos outros.

Notei o riso silencioso dele por trás do cortinado:

— Por que acha que deve guardar segredo?Você por acaso é padre?

Era a armadilha, o estratagema, a oportunidade de me safar. Respondi:

— Não, mas pode ser que um dia seja.

Muito contente com isso, e achando que tinha descoberto uma vocação, uma jóia rara no socavão da serra, absolveu-me daquele e de todos os outros pecados que eu nem tinha confessado ainda. Meu pai, ao tomar conhecimento do sucedido, viu naquilo um evidente sinal de unção. Mandou fazer para mim um terninho de brim caqui e em dois meses eu estava no seminário. Não desconfiava, no seu fervor, que tudo o que eu almejava era saber o que Telma sentia e se estava arrependida. Não estava.

Esta crônica já estava escrita quando o quadro que a ilustra chegou embalado em papel de presente. Foi secretamente pintado por Dirce Chaves a partir de uma fotografia tirada por meu irmão Antônio, no povoado de Campo Alegre, em Minas. É o próprio cenário de Telma e Padre Clemente. Dirce é minha vizinha e já produziu, nos raros momentos que lhe permite a lida diária, mais de 40 quadros. Tem uma página na web: Dirce Chaves. Vale a pena ver.