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A atemporalidade de Dora
Eustáquio Gomes
O aparecimento da opera omnia de um poeta nesta altura da história,
como é o caso da Poesia Reunida de Dora Ferreira da Silva, convida
a um olhar panorâmico sobre o século. Esse olhar, se descansado
e livre de paixões (que a poesia também tem sua política),
ajudará a compreender por que uma obra como a de Dora, ao construir-se
descolada das correntes predominantes de sua época (e talvez por
isso mesmo em relativa obscuridade), parece agora luzir mais que muitos
produtos fulgentes do último meio século.
Quando Dora começou a publicar — o primeiro de seus oito livros,
Andanças, é de 1970 — já ia longe o neomodernismo
de 45, perdiam velocidade as vanguardas das duas décadas seguintes
e medrava na sombra a poesia folhetinesca da geração mimeógrafo,
tão caudatária de Oswald de Andrade e, portanto, perfeitamente
inserida na série literária. Dora, fora de tudo isso, parecia
mais próxima do modernismo crepuscular de Murilo Mendes e, mais
atrás ainda, dos simbolistas do início do século.
Tributos espalhados ao longo de seus livros seguintes mostram os santos
de sua devoção, aqui Jorge de Lima, ali Cassiano Ricardo,
mais
adiante Fernando Pessoa. Era fácil descartá-la quando, em
vez das logomaquias ou das pilhérias da moda, ela simplesmente escrevia
coisas como: "Tenho-te um amor de mansidões / rebanho lento e branco
pascendo na alvorada".
Num tempo em que se exigia da poesia um clamor de grafites escritos com
sangue, Dora insistia em estar no reino da pura metáfora. No entanto,
alguns olhares mais agudos vez ou outra chamavam a atenção
para a qualidade atemporal de sua lírica, para uns órfica,
para outros dionisíaca (há uma pequena fortuna crítica
no final do livro). E ela própria, num poema dedicado a Emily Dickinson,
parece consciente de seu esforço de atemporalidade ao escrever:
"e corremos para escapar / à chuva de verão"; o que bem pode
significar que, oposto à sazonalidade de certa poesia, ela busca
antes juntar os fios do tempo e aproximar as vozes emuladas de distintas
épocas.
Assim, em meio a um simbolismo marchetado às vezes por "luas de
ausência", "búzios e medusas", "espelhos e ametistas", "cálices
de aroma e púrpura" — imagens que fazem com que a velha poesia ocasionalmente
escreva por ela —, não são raros os momentos em que o lirismo
de Dora alcança a ambigüidade do moderno metapoema e alça
vôos bastante altos. Por exemplo: "Despe-te, despede-te da túnica
do tempo / que detém / (...) onde murcham decepados caules / passadas
primaveras".
Uma poesia dessa jamais poderia prescindir do ritmo. É o ritmo que
dá aos sete sonetos de "Quando" (em Uma via de ver as coisas, 1973)
uma gravidade que lembra o drummondiano "A máquina do mundo". No
entanto, ao contrário de Drummond, que dizia não fazer livros
de poemas mas sim "coletâneas de poesias", Dora tem um forte sentido
programático da obra como um conjunto de peças ligadas entre
si. Menina e seu mundo (1976) quase se aproxima de uma novela ao mapear
o universo de sua infância e extrair de cada pequena coisa sua memória
biográfica. Assim também Jardins (1979), onde ela revisita
soberbamente paisagens e situações que, justapostas, perseguem
a harmonia na dicotomia. Por fim ela dedica todo um livro à musicalidade,
Poemas em fuga (1997), em que chega a beirar uma alta prosa poética
que é também uma de suas vertentes: "Henry Miller planando
no espaço em rudes soluços / (...) Anaïs a dizer-lhe
/ que a força é questão de ritmo". Ritmo, no caso
de Dora, guiado não apenas pelo ouvido, mas sobretudo pelo sentido.
O que dá um valor distinto à poesia de Dora? Do ponto de
vista formal, um domínio técnico que, mesmo nos poemas de
recorte cubista, de irregularidade dentada, resulta em ritmo e sonoridade.
Dessa fluidez se poderia esperar um certo mecanicismo da sintaxe, mas Dora
consegue escapar da mesmice através de uma dicção
que surpreende, mesmo quando rende seu tributo ao passado. Sua consciência
dessa necessidade parece evidente em versos como: "Não me destruas,
Poema / enquanto ergo / a estrutura do teu corpo / e as lápides
do mundo morto". Ou: "E tento conformar-te / à forma do buscado".
Como nos 52 poemas que formam toda a obra poética de Mário
de Sá-Carneiro, cuja qualidade não se altera do primeiro
ao último verso, como se já tivesse nascido pronta, também
assim são extremamente homogênos e coesos os 50 anos de poesia
de Dora Ferreira da Silva. Não há alteração
substancial nem técnica nem semântica. Mesmo quando soa como
uma voz anterior a si mesma, ela é sempre harmoniosa e definitiva.
E é assim que sua Poesia Reunida, publicada no cume do século,
permite não só aproximar distâncias, mas sobretudo
desfazer injustiças e encontrar para a poesia de Dora o seu lugar
histórico, que é, a rigor, atemporal.
(Publicada em O Estado de S.
Paulo)
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