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O prodigioso mundo de Reinaldo
Arenas
Eustáquio Gomes
A sociedade da informação tem gestos de reconhecimento que
se parecem com os processos de purgação coletiva, sobretudo
quando se trata de fazer justiça a alguém que, em vida, nadou
contra a corrente ou foi vítima de um sistema, seja este qual for.
Melhor ainda se o injustiçado morreu jovem. Se além disso
a obra for boa, perfeito.
É nessa atmosfera propícia à iconização
que chega aos leitores brasileiros O Mundo Alucinante, do cubano Reinaldo
Arenas, que há uma década matou-se em Nova York, aos 47 anos,
depois de saber-se soropositivo. A chegada do livro coincide com a entrada
em cena de uma cinebiografia do autor, dirigida por Julian Schnabel, calcada
no pansexualismo de Arenas e em seus infortúnios como opositor do
regime castrista.
Não se trata, em verdade, de um reconhecimento tardio, pois a obra
de Arenas vem sendo saudada desde 1969, quando O Mundo Alucinante caiu
nas mãos dos franceses e passou a engrossar, ainda que secundariamente,
o chamado boom latino-americano. Em alguns círculos tornou-se objeto
de
culto e, no circuito universitário (predominantemente hispânico),
como uma peça de negação do discurso histórico
opressivo — ou da opressão em todas as suas formas.
Habilmente, para contar a história das intermináveis perseguições
a que foi submetido Servando Teresa de Mier, frade dominicano que participou
da independência do México em 1821, Arenas utiliza o automatismo
de uma certa linguagem historiográfica — que muitas vezes se confunde
com hagiografia — transformando-a numa paródia do discurso histórico
canônico. Com isso ele obtém o efeito da negação
do próprio discurso, seja pela carregada ironia que atravessa o
texto do princípio ao fim, seja porque a informação
do que acontece a Servando é freqüentemente desmentida ou reescrita
sob outro ângulo por múltiplos focos narrativos. Assim a verdade
nunca se estabiliza e, de resto, pouco tem de verossímil.
Num universo de sonhos e alucinações onde tudo é possível,
a fluência de Arenas é prodigiosa. Metaforicamente ou não,
o protagonista é capaz de devorar correntes de ferro, catapultar-se
sobre lagos e atravessar o oceano a nado. Não por acaso, numa introdução
de 1980, Arenas ironicamente reivindica precedência sobre Cem Anos
de Solidão, o popular romance de García Márquez que
lhe daria o Nobel em 1982.
As desventuras do frade se sucedem com velocidade tal, e seus desfechos
são tão insólitos, que chega-se à conclusão
de que o enredo, aqui, é o que menos importa. De fato, há
alturas em que narrativa se torna tão saturada de peripécias,
e as peripécias tão rebarbativas, que o leitor terá
talvez a tentação de pular páginas, na esperança
de mudar de ares no capítulo seguinte. Mas isso raramente acontece,
já que o frade só faz saltar de um cárcere a outro
e seus suplícios são sempre os mesmos, variando apenas a
forma de serem ministrados. E, não fosse a sedução
do estilo de Arenas, o leitor teria o direito de se imaginar nas teias
de uma imaginação tão arbitrária quanto a dos
poderosos que oprimem o frei.
Os pontos altos do romance são aqueles em que o autor, conscientemente
ou não, se parece com Kafka. Destaco o episódio em que Frei
Servando, já com fama de demônio, é agrilhoado numa
prisão espanhola cujos carcereiros, apavorados, vão acrescentando
grilhões cada vez maiores aos já existentes, até que
o prisioneiro desaparece entre eles e a própria prisão é
soterrada sob o peso de tanto ferro, permitindo sua fuga.
Que o livro tenha sido escrito antes dos 25 anos do autor explica os excessos
que certa crítica interessada em geral não aponta, em nome
de um processo de santificação que segue seu curso. Boa parte
da fortuna crítica disponível sobre Arenas prefere encontrar
em sua obra, além de uma perfeita metáfora de seu destino
pessoal, genialidades estruturais que passam por "pares semióticos
indossolúveis", "linhas isotópicas estruturadas" e "desenvolvimentos
diegéticos". Coisas que, além de se assemelharem a uma nova
forma de Latim, projetam o mesmo discurso canônico que o próprio
Arenas rejeitaria.
Um virtuose da técnica, sem dúvida Arenas o é. Como
poucos, ele desenvolveu muito cedo uma capacidade aguda de mimetizar discursos
estabelecidos para desconstruí-los e arruiná-los em seguida
(no que, talvez, desgostou Castro). Mas não pense o leitor encontrar
aqui a água cristalina de um Albert Camus ou de um Thomas Mann,
que aos 25 anos também já tinham produzido obras-primas,
não das de imaginação desabrida, mas das que impressionam
pela contenção dos fatos e pela densidade da linguagem. Arenas
é de outra natureza — um surrealista cuja profusão é
parte de sua liberdade reivindicada — e como tal deve ser lido.
(Publicada em O Estado de S.
Paulo)
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