Jonas  Blau
 

Eustáquio Gomes
 

Capítulo I
 

Onde Jonas, 
seguindo uma linha na parede, 
ouve o rufar de tambores

      1 O general Mourão marchava com suas tropas rumo ao Rio de Janeiro, pronto para interceptar o exército do mal. Lúcio rebateu com tanta força que sua raquete zuniu no ar e a bola subiu e chocou-se no teto de madeira. Quando o governo do mal tomou conhecimento, o bravo general já atravessava a ponte sobre o rio Paraibuna.  Essa foi ruim, Lúcio, caramba, o jogo tá empatado. Na tal ponte deram uma parada para o bravo general ler um discurso pelo rádio. A bola escapou do salão de jogos, desceu os degraus do pátio e foi se alojar na confusão de aros e pedais do estacionamento de bicicletas. A voz do bravo general nos chegava desaparecida numa nuvem de estática.  A bola foi reposta em jogo e Lúcio, com um riso de mofa, voltou a dominar.

      2 Conhecem aquela do célebre autor francês que foi induzido por seu confessor, o abade Séguin, a escrever uma obra edificante como expiação de um pecado mortal? O esforço pode ter resultado em obra-prima, mas a motivação, convenhamos, era desprezível.

      No plano das segundas intenções, receio que vejam nestas notas um mero instrumento de vil vindita, ou seja, eu lhes dou publicidade apenas para aplacar algum secreto desejo de vingança.

      Outros, ao contrário, podem pensar que meu propósito é instruir, e assim me confundem com um desses moralistas que ainda empestam o nosso tempo, como antes empestaram o tempo de Chateaubriand e Sterne, de Machado e Oswald. Não é nada disso.

      3 Na verdade quero apenas contar uma boa história, de resto cômica, e minha ambição não é outra senão divertir. O fato de que seja uma história real e ainda recente não me preocupa.  Se abro feridas, então devo parar de lembrar? Não desejava aborrecer ninguém, muito menos o bom monsenhor, por onde andará? Se estiver vivo, que evite os jornais e intensifique suas orações.

      4 Quanto aos outros (Lúcio, Estillac, Galvão, Roldão, Barbieri et Caterva), não espero deles mais que o esquecimento. Eu próprio, aos poucos, já os esqueci. Éramos muito jovens em 1964 e o que conservei deles são traços que a fantasia modificou. Dá no mesmo: nem Hitler nem Napoleão nem Getúlio nem Mussolini eram o que as estampas mostram. Também nosso pequeno reich não era exatamente como o descrevo. Era muito pior.

      5 Por essa época eu havia passado a crer num lugar de nome difícil, espécie de Pasárgada ou sei alto o nome desse lugar, nem nunca o escrevi, a não ser sob a camuflagem algo aleatória da palavra Evilath, segundo rezava minha bíblia de Mogúncia com estojo de madrepérola. Claro que nunca possuí um estojo de madrepérola nem muito menos uma bíblia de Mogúncia, mas que é que isso importava? Se alguém conseguia chegar até Evilath (na verdade uma ilha imaginária no alto do Pacífico) era porque tinha decidido viver de peito aberto, sem simulação. Uma vez lá, a pessoa estava arranjada. Podia ter problemas pela frente, mas o problema de como viver estava resolvido.

      6 Vá lá, eu era um garoto imaginativo, mas aquilo não podia dar certo.

      7 Seja como for, era para lá que eu ia sempre que as coisas se complicavam ou ameaçavam sair de controle. Lá estive por dois dias quando Lúcio me eliminou do campeonato de pinguepongue e quando (mas isto foi pela mesma época) o Destacamento Tiradentes marchou sobre o Rio de Janeiro, tendo à frente o bravo general Mourão.

      8 Diziam que as tropas do governo iam resistir e que o bravo general marchava com soldadinhos de chumbo. O grande rádio de válvulas passou a tarde com o alto-falante voltado para o pátio.  Mas as notícias eram confusas ou incompletas ou desmentiam as anteriores.

      9 Enjaulado em seu escritório, monsenhor leão exaltava ao telefone: 

       — Minas tomou as rédeas, berrou num interurbano. 

       Para o bispo, setenciou: 

      — Era preciso combater a hidra e ela está sendo combatida, excelência.

       Dom Gaspar fez que não ouviu.

      10 Às duas chegou uma ligação de Juiz de Fora, mais um dos misteriosos telefonemas do tal major, o major Aureliano Paz. Devem ter ouvido falar desse famoso oficial, hoje coronel.  Uma vez apareceu no seminário com o peito cheio de medalhas e umas dragonas amarelas.  Ficamos fascinados. Leão tinha sido capelão no regimento dele e ficaram amicíssimos. Pouco se falava disso, mas o monsenhor dava a impressão de ter eleito esse período o eixo de sua vida, o silêncio funcionando aí como um elemento de nobreza. Para Lúcio, estava ali um belo exemplo de amizade entre homens de verdade, ainda mais porque reproduzia em escala humana, disse, as históricas ligações da Igreja de Pedro com o Exército de Caxias.

      11 No auge do entusiasmo, nos fez perfilar no pátio e proferiu um discurso nacionalista.  O bispo desceu fulo as escadarias de seu palácio, de modo algum compartilhando dessa alegria guerreira. Repreendeu o ex-capelão e censurou nele o que chamou de "ingenuidade criminosa". E citou um pensador mundano. Leão recuou magoado para o escritório. Passou por nós de olhos úmidos. Aquilo aumentou nele a suspeita de que o bispo era comuna. Comuna! Usaria isso mais tarde contra dom Gaspar.

      12 Tomado de pressentimentos, passei a tarde refugiado na capela. Entre a capela e o salão de jogos havia o pátio, o renque de seis salas de aula, o teatro, a cozinha, os banheiros e a lavanderia. O salão estava cheio, mas no pátio havia ainda mais gente. Aqui, barreiras compactas de bundas cercavam as quatro linhas de giz no basalto, com rebatedores de cada lado. A partida tinha chegado a um ponto crítico em que um desfecho trágico parecia inevitável.

      13 Abri caminho na platéia furiosa e me vi sozinho num canto do pátio rente à parede que se estendia, como um bulevar, até a lavanderia. Avancei às tontas acompanhando uma linha na parede. A linha errava indecisa até o beiral do telhado, de onde despencava na direção do rodapé, imitando a queda brusca de um gráfico. Ali se convertia numa fenda que ia aumentando de espessura, a espessura de um barbante, até se encontrar com o basalto do pátio. Mas lá ia ela de novo, às vezes ameaçando dividir-se, outras sumindo para reaparecer mais adiante, como se tivesse caminhado um bocado debaixo da camada de basalto.

      14 Avançava agora em direção ao corredor das salas de aula, todas fechadas e com números metálicos acima das portas. As salas à esquerda eram as de número 2, 4 e 6. Os números à direita eram 1, 3 e 5. Olhei o número 2 com familiaridade: lá dentro respiravam as vinte e uma escrivaninhas da sétima série, a minha entre elas. Andava agora cheia de poemas e descrições da ilha de Evilath, e havia também um novo diário, o outro tendo sido confiscado. Me lembrava de ter escrito ainda ontem: "Uma sombra se estende sobre nós... e se chama medo".

      15 Um pouco acima do número 3 a linha fazia um semicírculo e corria firme na direção do número 5, onde se bifurcava para reencontrar-se mais adiante, formando uma ilha oblonga.  Depois caía, caía, quase se perdendo de novo no chão. Mas eis que agora ela corcoveava e se metia por debaixo de uns sapatos cambaios. Eram os sapatos de Estillac, vulgo Paganini. O próprio se achava plantado dentro deles.

      16 Paganini riu para mim com uns dentes em ruína:

      — Então como vai a coisa? disse.

      — Como vai o quê, caramba! respondi de mau humor.

      O pedaço de céu que se via daquele ponto não era grande coisa: duas nuvens rendilhadas sobre um fundo de azul pálido. À esquerda apontava uma quina de telhado ocre (o telhado da lavanderia) e à direita uma das escotilhas do torreão do palácio do bispo, de onde os pombos cagavam. O cimentado sob as escotilhas já tinha virado calcário de tanto acumular bosta de pombo.

      — Cê vem da Austrália, insistiu Paganini, deve saber.

     — Talvez saiba, rosnei, se você desembuchar logo o que quer.

      A Austrália compreendia o pátio de basalto, o salão de jogos e o escritório de Leão (ou a jaula).  Do lado de cá ficava a Oceania, exceto os banheiros, que eram a África.  A América era no andar de cima (o dormitório), enquanto a rouparia e seus baús empoeirados eram a Europa.  Ignorávamos a Ásia. O imbecil parou de rir, guinchou:

      — A guerra, cara!  O general!

      Espinafrei:

      — Eu sei lá de merda de guerra!  Sei lá de droga de general!

      E dando um empurrãozinho nele procurei recuperar a trajetória da linha.

     17 Eu estava enraivecido por ter topado com semelhante lorpa, a quem ninguém tinha em boa conta. Era a vergonha da oitava, insuficiência em tudo, menos em música. O pai lhe tinha dado um violino com encordoamento de categute, flamejante de tão novo, que ele retirava com estudada lentidão do estojo negro forrado de veludo vermelho. Daí o apelido. Tocava bem. No mais, não passava dum animal do qual convinha fugir. Passava semanas sem saber o que era banho e dragava meleca do nariz, sem contar que vivia suado e peidava em público.

      18 Sob esse aspecto, Paganini se parecia com o torpe Roldão, cuja única virtude reconhecida era ir à linha de fundo como um macaco ensaboado e cruzar com inexplicável perfeição, geralmente na cabeça de Lúcio ou de Santos Dumont. Só por isso era respeitado. Para Winston Churchill, Roldão tinha o cérebro no pé esquerdo, assim como Paganini, na mão direita.

      19 De Roldão se dizia que possuía a delicadeza dum cavalo e a beleza dum porco.  Isso explica o seu nome de guerra: Cavorco. Era tão feio que a seu respeito corria a nefanda anedota de que, tendo nascido num quarto escuro, por descuido teriam atirado a criança fora e criado a placenta. Seja como for, lá está ele socando uma bola ovóide presa a um poste de madeira por uma corda apodrecida. A cada pancada a bola rodopia em torno do poste e a base carcomida estremece. Pam, vupt!  Pam, vupt! Do lado oposto, o pequeno Camerlno vareja o braço magrinho contra o ovo ricocheteante na tentativa de lhe travar a trajetória.  Esforço vão. Valendo-se da altura, o Cavorco se precipita para a bola e lhe desfere uma série impressionante de golpes, fazendo-a subir vários nós até ficar completamente fora do alcance do esbodegado Camerino. Com mais dois ou três socos liquida o jogo.

      20 Um círio fumegava entre um anjo e uma Nossa Senhora. Havia flores frescas no altar, grandes rosas vermelhas em vasos de barro cru, de modo que o silêncio parecia ali de uma pureza antiga e doce. A toalha alvíssima lembrava a antiga paz das praias de Evilath, onde brilhava um sol amarelo. Eu tinha lido histórias de centuriões e coroas de espinho, mas isto de generais e baionetas não tinha graça nenhuma. Achava sinistro que lá fora a excitação aumentasse toda vez que chegava uma informação nova. A última dizia que São Paulo tinha aderido e que o número de voluntários já ultrapassava dez mil. Estavam pedindo mais voluntários. Mais bucha para canhão. Ia correr sangue.

      21 Ao me ajoelhar, a tristeza desse pensamento foi compensada pela suave alegria de reencontrar a linha perdida. Cá está ela, a misteriosa, a indecifrável, a fugitiva. Tinha-se metido na reentrância de um ladrilho rachado, sendo ela própria, com efeito, a rachadura. Corre agora pela coroa de rododendros entre os bancos vazios, na direção da parede. Aqui, sobe nítida um metro, intromete-se nos caixilhos de um dos vitrais varados de sol — o terceiro da esquerda para a direita.  Impossível saber onde vai dar, a não ser que você pule para o outro lado. Do outro lado um passeio estreito, um muro baixo com quaresmeiras e depois é o campo, depois as estradas, depois as lavouras e finalmente as cidades, os parques, os estádios de futebol, os circos, as piscinas públicas, os estaleiros, as praias, os grandes hotéis, as avenidas espaçosas e as multidões. Sabe lá onde acaba tudo isso, caramba. Seguindo-a talvez você vá parar em Roma, talvez em Moscou, talvez no mar (que para você é apenas uma apavorante imagem mental), talvez no país de Evilath.