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O Urso da carpintaria
Eustáquio Gomes
Tudo começou quando soube
que Ezra Pound morava naquele edifício da rua Notre-Dame-des Champs,
em Paris, e subi para tentar obter dele uma entrevista. Fui recebido à
porta por sua mulher Dorothy e amavelmente conduzido a um estúdio
com quadros de pintores japoneses nas paredes. Eu esperava encontrar o
célebre poeta mergulhado na árdua tarefa de elaborar mais
um de seus Cantos, por isso me surpreendi um bocadinho ao depararcom ele
nu da cintura para cima e com um pesado par de luvas nos punhos, gingando
diante de um rapagão de faces lisas e vermelhas que sorria o tempo
todo. O rapaz parecia gozar a completa inexperiência de Ezra como
pugilista.
Procurei assumir um ar eqüidistante
e não estranhar coisa alguma, nem mesmo o jeito rude como em certo
instante o jovem acertou em cheio um trompaço no queixo do poeta,
fazendo-o cambalear. Logo em seguida Ezra pediu que jogassem a toalha.
Dorothy, sorridente, fez isso. Não vi Ezra mostrar o menor sinal
de impaciência ou rispidez. Cansado e suado, dirigiu-se a mim com
uma cordialidade que eu já sabia típica dele, pois corria
mundo a informação de que ele ajudaria quem quer que fosse,
desde que para benefício da arte...Tinha sido assim com William
Butler, Yeats e com T.S.Eliot, que era um atarefadíssimo bancário
até Ezra o livrar dessa vida às custas de subvenções
entre os amigos. Mas Paris estava cheia de excêntricos e eu tendia
a considerar que ali estava um. E sabe-se que com os excêntricos
o melhor mesmo é deixá-los em paz. Obteria a entrevista e
daria o fora.
Aconteceu que Ezra, modesto, falou
largamente sobre a arte e quase nada de si, de modo que ao me achar novamente
na rua não podia esconder minha decepção. Foi quando
resolvi convidar para um drinque o rapagão de maçãs
vermelhas, na esperança de arrancar dele qualquer inconfidência
acerca do homem que ele acabara de esbofetear. O rapaz me levou nada
menos que ao Cioserie des Lilas, bar onde costumava reunir-se toda a malta
de escritores boêmios e artistas manqués da Europa inteira,
e também um grande número de americanos que estavam tentando
viver como escritores às custas da desvalorização
do franco.
Havia alguns deles espalhados pelas
mesas do salão, servidos por garçons sonolentos, e falei
a respeito com o rapaz. Ele fez um gesto de profundo desprezo pelo que
via. Eram estrangeiros como ele mas, a crer no seu gesto, nada tinham a
ver com pessoas como Ezra. "São gente que faia o tempo todo em escrever
mas nada escreve", disse. "São todos assim?", perguntei. Ele pensou
um pouco e respondeu que não. Conhecia dois que certamente eram
diferentes, mas não costumavam aparecer tão cedo. "Não
antes de concluírem sua cota diária de trabalho", disse.
Referia-se a James Joyce e a Scott Fitzgerald.
"Então conhece Joyce?",
indaguei, encantado. Ele respondeu que qualquer pessoa em Paris podia ver
Joyce no Michaud aos sábados, onde costumava almoçar com
a mulher e os filhos. Mas acontecia de Joyce almoçar sempre muito
tranqüilamente, porque era um homem pobre e não tinha lá
muitos amigos. Daí para a frente a conversa ficou fácil e,
esquecendo completamente a reportagem sobre Ezra, falamos de todos os outros,escritores
que ele conhecia e fiquei sabendo que ele próprio estava tentando
sair desse buraco fundo e degradante que se chama anonimato.
Nessa altura o Lilas já
estava repleto de gente e o rapaz, pretextando barulho, anunciou que ia
embora. Fez questão de deixar a conta paga e quase se enfureceu
quando ensaiei meter a mão no bolso. Pouco antes eu o ouvira dizer
que desde que deixara o último emprego, estava tentando viver das
escassas economias de sua mulher. Soube então que era casado e que
tinha um filho que atendia pelo apelido de Bumby. A mulher era de
St. Louis e chamava-se Hadiey Richardson. Deviam viver muito pobremente,
a avaliar pela sua roupa. Estávamos no impasse da conta quando se
aproximou do balcão um conhecido dele, um outro respeitável
par de punhos, que acenou rindo em minha direção: "Não
adianta, amigo. Se o velho Hemingstein vai com a sua cara, fique certo
de que pagará até mesmo o seu enterro".
Depois de me apresentar apressadamente
ao recém-chegado - era Haroid Loeb, um bacharel de Princeton, que
acabava de publicar um romance -, o velho Hemingstein despediu-se e saiu.
Era como se evitasse Loeb. Vi-o passar, maciço, pela porta do Lilas
com seu par de tênis gastos e seu blusão de couro remendado.
Antes de atravessar a rua, dançou de um modo engraçado frente
a um tróiebus, levando do condutor uma boa reprimenda. Do balcão,
no interior do bar, Loeb ria como um louco.
Desde esse dia fiquei amigo de
Harold Loeb e ouvi dele coisas interessantes sobre Paris e especialmente
sobre Ernest Hemingway. Ou Hemingstein, ou Ernie, ou Hem. Eram nomes sonoros,
mas que não me diziam nada. E no entanto, havia algo de magnético
neles. Loeb garantiu-me que estava ali o maior romancista da recente safra
de deserdados americanos, mesmo não tendo ele ainda escrito romance
algum. Mas era sempre possível que estivesse escrevendo um, embora,
em se tratando d um tipo instável como Ernie, nunca se pudesse saber
com certeza. De todo modo, alguns de seus contos eram apontados por Edmund
Wilson e Gertrude Stein como "tecnicamente perfeitos". Loeb só não
entendia por que as revistas continuavam a devolvê-los um a um pelo
correio. Isso deixava Ernest na maior desolação. William
Bird, um pequeno editor de Paris e amigo de Ernest, para animá-lo
publicou uma plaqueta com três contos e dez poemas seus, mas, segundo
Loeb, não era ainda algo que se pudesse levar a sério. O
livrinho chamavase exatamente Três Contos e Dez Poemas. Fora isso,
Hemingway tinha um contrato assinado com a firma Boni Loveright, dos Estados
Unidos, a mesma que editara o'Doodab de Loeb.
A respeito desse contrato havia
uma boa história envolvendo um agente de Loveright, Leon Fleishman,
que mostra bem o tipo de instabilidade hemingwaiana a que Loeb se referia.
Fieishman tinha acabado de desembarcar em Paris à cata de novos
talentos e Loeb não descansou enquanto não arranjou um encontro
dele com Ernest. O agente apareceu com um smoking de veludo que
contrastava dolorosamente com as roupas de Ernest. Talvez por isso, ou
porque o agente feriu a vaidade de Ernest ao especular que “esperava
gostar de suas histórias”, o fato é que Hemingway antipatizou-se
à primeira vista com Fleishman. Foi com um travo na garganta que
ouviu Fleishman desfiar uma lengalenga sobre autores novos e a generosidade
da Loveright para com eles, a maioria dos quais nada rendiam à editora,
a não ser prejuízo e montanhas de volumes encalhados no depósito.
Loeb contou-me que empalideceu quando viu Ernest levantar-se pesadamente
da poltrona e, lançando fogo pelas ventas, chamar Fleishman de bicha
e de outros nomes muito piores. Depois de anos contradizendo sua mulher,
Loeb estava finalmente tendendo a acreditar que Hemingway alimentava sentimentos
anti-semitas. Apesar dos contratempos, o contrato foi assinado.
Havia outros fatos que, na opinião
de Loeb, provavam que o "velho Hem" apreciava morder a mão dos que
haviam procurado ajudá-lo. Logo depois do incidente com Fleishman,
Loeb levou um tal Paul Fischer, seu amigo particular e "arquiteto de fina
educação", para aprender com Ernest alguns truques da arte
do boxe. Tudo transcorreu muito bem até que, inexplicavelmente,
Hemingway passou a desferir contra o desorientado Fischer uma saraivada
de golpes duros e indefensáveis. O pobre rapaz saiu com o rosto
cheio de equimoses. Tudo isso era esquecido, entretanto, quando Hem acordava
com o pé direito e começava a falar das touradas espanholas
que ele tinha visto em 1923 e 1924. Ou quando iam juntos jogar tênis
no Metropolitan. Ou quando se abalavam para as corridas ciclistas de seis
dias. Nessas ocasiões, Ernest era outra pessoa e Loeb, se preciso,
pagaria alto para tê-lo como companheiro.
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