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O Mapa
Eustáquio Gomes
Todos os casais felizes se parecem, os infelizes são
infelizes cada um à sua maneira. Tolstoi. Vivemos juntos três
anos, Lúcia e eu. Desses, creio que os três últimos
meses não contam muito, pois já era então como se
fôssemos dois estranhos. E estou certo de que nesse estágio
final não nos parecíamos com ninguém mais, senão
como explicar que seis meses antes (em particular os dois meses que precederam
o esfriamento e a tibieza) a gente se comportasse como o casal mais harmonioso
do mundo?
De repente ela me soprava na concha do ouvido: "Nós
nunca fizemos daquele jeito, jônatas querido, mas se você quiser
posso ir buscar a pomada". Eu sentia arrepios, achando o tom parecido demais
com o de uma prostituta, pois era como se ela dissesse: "Espere um instante
que vou chamar o jardineiro". Eu condescendia e até gostava, pois
afinal não se tratava do jardineiro ou do açougueiro, mas
de prazeres novos que a gente partilhava como marido e mulher. Começavam
a ser tantos e tão variados que eu me surpreendia com o engenho
dela, ora no encosto do sofá, ora sobre a grande pia de mármore
ou até mesmo contra o tanque, lá fora, protegidos só
por um biombo de madeira.
Assim eu descobria nela um gosto particular por parapeitos,
anteparos ou qualquer plano sólido contra o qual pudesse ser pressionada
e judiada, melhor dizendo, currada. Eu a satisfazia tanto quanto podia
e pensava, fascinado, que tinha sido presenteado com uma nova mulher sem
ter precisado me livrar da primeira. E já quase não me lembrava
mais da outra, a redatora de frivolidades que também se chamava
Lúcia mas que certamente não era a mesma, dada a considerável
diferença de humor, amor e repertório.
Então chegamos ao ponto em que era preciso ir
mais longe ainda e foi aí que a coisa rebentou, como rebenta o relógio
a que se dá corda além do ponto.
Morávamos num velho apartamento térreo,
feio por fora e aconchegante por dentro, com o janelão do quarto
dando para um pátio quadrado onde outras residências iguais
se juntavam e pareciam confabular. Debruçada no parapeito dessa
imponente janela, minha mulher gastava horas conversando com suas amigas
da vila, ora uma, ora outra, porém quase sempre três ou quatro
ao mesmo tempo, amotinadas no pátio. E o que antes me parecia uma
inocente perda de tempo agora se revestia, para mim, de uma inquietante
possibilidade. Penso que também para Lúcia, visto como brincava
prazerosamente com o traseiro oval, dobrando ora uma perna ora outra e
mantendo-a colada à coxa durante o tempo que lhe apetecia, para
depois deixá-la deslizar numa queda lenta e cheia de langor.
Esse particular, mais o tititi que rolava solto entre a janela e o pátio,
agia sobre mim como o esporão do diabo. Sem que ela se apercebesse
(ou talvez tenha percebido desde o instante em que pela primeira vez eu
me pus a rastejar de uma ponta a outra do quarto como um soldado de infantaria)
colocava-me de costas bem debaixo dela, tomando cuidado para não
assustá-la quando lhe tocava um calcanhar e dali subia ao joelho,
depois à parte interna da coxa onde há uma pequena marca
de nascença semelhante ao mapa da Austrália, e, delicadamente,
com a ajuda de dois dedos clivados, avançava entre seus pentelhos
e separava os grandes lábios como se separam as pétalas de
uma flor. Enquanto minha mão direita lhe acariciava o bumbum,
a outra, a sinistra procurava nela os refolhos da alma. Brincava
e me comprazia em fazê-la produzir sumo. Meu desejo era levantar
meio corpo e penetrá-la de um só golpe, mas esta seria uma
operação perigosa, pois sou mais alto que ela e podia ser
que vissem do pátio a minha cabeça lanosa. Então contentava-me
com erguer só um pouquinho o dorso e o fazia como faz o soldado
sequioso que mete a cara debaixo da bica para saciar-se enquanto a infantaria
descansa e cavaqueia; isto é, encaixava a cabeça entre suas
coxas e recebia a pronta e silenciosa colaboração dela, que
afastava-as o mais que podia para que eu pudesse avançar até
o ponto de colar a boca em sua fenda.
E enquanto ali permanecia, fazendo o que um macho faz
desde os albores do mundo, trabalhando voraz com a língua e até
com a polpa dos dentes, à maneira dos gatinhos que fingem morder
a mão do dono, podia sentir que ela fremia inteira e tinha espasmos.
De uma feita, creio que uma das últimas, chegou mesmo a esticar
um braço para trás e com a mão crispada contornou
minha nuca, apertando-a com energia e cravando-lhe a meia-lua das unhas.
Quase gritei de dor, mas o prazer que eu provocava nela (podia percebê-lo
na trepidação de seus músculos) retomava para mim
como um fogo de cautério e superava todo sofrimento. E enquanto
eu trabalhava nela e via-a contorcer os quadris, não de maneira
brusca ou ostensiva mas suave como o bambolear das ancas de uma alimária,
admirava-me que embaixo ela escaldasse e nas alturas continuasse a triscar
tão serenamente com as amigas. Uma delas acabava de dizer:
" ... aquele meu vestido de veludo cotelê", ao que Lúcia,
dona de um guarda-roupa abastecido em grifes que ela adulava em sua coluna,
respondia que quase não tinha roupa de festa, uma evidente mentira.
E por aí não se chegava a lugar nenhum, nem se pretendia
que chegasse, o papo vadio mais parecendo um pretexto para servir de contraponto
à verdadeira conversa que se passava embaixo, entre ela e eu, um
diálogo de mucosas.
Muitas vezes aspirei pela ubiqüidade para ter sido
capaz de ver as transformações que se operavam em seu rosto
enquanto eu a sugava. Em imaginação colocava-me de pé,
no pátio, atento às linhas de seus zigomas, torcendo para
que suas amigas percebessem o que se passava na penumbra do quarto. Vá
lá que entrassem no clima e tomassem a casa de assalto. Mais de
uma vez tive a certeza íntima de que minha mulher estava preparada
para aceitar os termos dessa fantasia. Mas o que se seguia, com pequenas
variações, era sempre o mesmo: ela despedindo-se das amigas,
fechando a janela de duas abas e voltando para mim uns olhos vítreos
e dilatados. Imediatamente eu a derrubava no tapete ou sobre o colchão
e me atirava em cima dela com selvageria, pressionando-a contra as barras
da cama ou sobre o estofo do criado-mudo, quase atravessando-a com a minha
clava úmida e escaldante - que Lúcia, muito religiosa na
infância, costumava comparar a um círio pascal.
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