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Um Andaluz nos Trópicos
Eustáquio Gomes
O ateliê fica numa rua estreita, quieta e desprezada pelo tráfego
do centro da cidade. Não fosse pelos altos edifícios que
a emparedam de ambos os lados, seria um beco parisiense. Mas é
a rua Coronel Rodovalho, em Campinas. Quando lá chego Bernardo
Caro já está à minha espera, em pé, na calçada.
Acaba de subir a porta de aço corrugado. Abre uma segunda
porta, a chave, e entramos.
Que tem aí? pergunto apontando a sacola de mão que ele
carrega.
Vinho. Um Tio Pepe. Espero que goste. Trouxe da Espanha quando estive lá o ano passado.
O diabo é que não bebo.
Nunca vi um jornalista que não beba.
Há jornalistas que não bebem.
Não são jornalistas verdadeiros.
Ri e começa a escalar a escadinha de madeira que dá no mezanino
idem.
Enquanto subo atrás dele, lembro que estive aqui uma vez há
vinte anos.
Desde então o estúdio não mudou nada. A velha poltrona
está no mesmo lugar. Continua também ali o grande cavalo
de papelão e gesso, escândalo da Pré-Bienal de São
Paulo, edição 1972. A cabeça do cavalo ultrapassa
o nível do piso inferior, e para fazê-lo caber no estúdio
Bernardo seccionou um quadrado do piso de madeira do mezanino. Assim quem
acaba de subir a escada a primeira coisa que vê é a cabeça
espetacular do cavalo.
Vou abrir as janelas, diz.
Lembro-me da razão por que vim até ali.
Cadê o "Touro Mecatrônico"?
Bem atrás de você.
Viro-me e dou com o enorme quadro escalando a parede do piso até
o teto. Tenho um choque. A tonalidade verde predomina sobre os tons intermediários,
mas a impressão geral é sombria. Não há sangue,
embora se trate de uma cena de morte dupla. Ao alto, preso ao carro estraçalhado,
o piloto parece dormir um sono plácido no interior do cockpit. Sua
cabeça pende um pouco para o lado. Embaixo, o toureiro se imobiliza
num movimento em falso enquanto o cachaço do touro avança
com seus chifres rombudos e apanha a parte interna de sua coxa esquerda.
A expressão do toureiro é de dor, mas também
de tranqüila aceitação. Da solenidade do quadro emana
um grave silêncio.
Seu poema está grafado aí em algum lugar, diz ele. Pode
ver?
Onde?
Bernardo se aproxima e põe-se a decifrar para mim o texto que, só
agora noto, recobre a carenagem do carro. Também a roupa do toureiro
está engalanada com essa espécie de alfabeto cifrado.
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