Eustáquio
Gomes
1
São quatro as fontes principais
para esta crônica, e, uma vez mencionadas, não vejo motivo
para citá-las novamente: as atas da Câmara Municipal de Campinas
referentes aos meses de março e abril de 1889; o depoimento verbal
do cronista e historiador bissexto J. B. Canastra; os jornais da época,
principalmente o Diário de Campinas, cuja coleção
completa é uma relíquia do Centro de Ciências, Letras
e Artes. A quarta fonte é o meu forte sentido cognitivo, que Canastra,
para bulir comigo, chamava de imaginação. Dito isto, vamos
à história.
2
Nos dias negros, com as esquinas
desertas clareadas por fogueiras de alcatrão, podiam ser vistos
pelas ruas dois ou três tílburis, não mais. Dentro,
sonolentos, sacolejavam os médicos entre baforadas de charuto. Iam
de um extremo a outro da cidade contabilizando mortos. Contabilizavam também
o tédio que se acumulava dentro, como a sujeira nas caixas de gordura
e a bosta fedorenta nos quintais.
Um renque de carroças aguateiras
dormita frente ao Hotel Europa, entre poças de água podre
fermentada durante o dia, ao sol. Luís Alvim põe a cabeça
para fora e vê as carroças, embaixo. Acaba de perder o sono.
Quando um tílburi aponta em velocidade, saído da Rua Direita,
Alvim recolhe a cabeça e em seguida fecha a janela.
3
Não longe dali, um corpo
de velho martiriza-se debaixo de uns peitinhos de ninfa. Recendendo a fumo
de corda, as unhas encardidas e o bigode amarelo, o barão Da Mata
resfolega, geme e cai de lado. Porra, explode. Sabe-se tão reumático
e imprestável quanto a Monarquia. Não importa, basta trazer
a menina sob sete chaves. Contendo o asco, a doce e intocada Angélica
submete-se antes de ir ajoelhar-se no oratório. Depois, para limpar-se,
mergulha nas sabatinas de seus alunos do Culto à Ciência.
4
Afundado em lençóis
de seda, o barão volta a procurar razões para o novo fracasso.
Se procurar bem, essas razões, embora duvidosas, não se negarão
a aparecer. Primeiro, houve uma festa a noite passada, a festa do noivado
da cunhada, em que ele se encharcou de vinho moscatel. Depois, não
se sente nada curado de uma pequena querela com a mulher, cuja inexplicável
descortesia para com os convidados — desaparecendo por quarenta minutos
no auge da festa — é coisa por ser ainda apurada. E, por último,
não pára de preparar mentalmente a viagem que fará
amanhã, um estirão de quinze léguas, a negócios.
Nesse momento, a única coisa que lhe dá prazer é pensar
que despachou a cunhada para Paris, por um mês, pelo Orénoque.
Além de impressionar bem, esse caro turismo afasta para longe, por
uns tempos, a influência de um falso liberalismo muito em voga. A
cunhada lia George Sand.
5
Eis finalmente uma história
de amor onde não entra a misericórdia. Entra a paixão
desenfreada, sempre possível nos trópicos, entre um homem
e uma mulher. E por tratar-se de mulher mal-amada caída nas mãos
de um libertino qualquer, sempre visto nos bares do centro de gravatinha
vermelha (o emblema republicano), as más línguas logo trataram
de espalhar que a República estava fodendo o Império.
6
Lia-se Zola no original e Júlio
Ribeiro pontificava num ambiente de benevolência, mas literatura
é uma coisa e a vida outra muito diferente. Aquilo devia terminar
tragicamente, como se verá. Em 1937, quase meio século depois,
a história ainda era lembrada com um toque de escárnio e
prazer malsão. Foi preciso desabar a Segunda Guerra Mundial para
que ela se empoeirasse nos livros de reminiscências. Mas em 1975
um cronista obscuro a desenterrou jogando-lhe um pouco de luz e outro tanto
de fantasia. Esse cronista afirmava ter conhecido Alvim no ano de sua morte,
num hospital para leucêmicos, e ouvido dele particularidades da história.
7
A fantasia é preferível à realidade, mas vamos ficar
com o rigor dos fatos ou isto não é uma crônica. Nada
de engodos. Ao contrário do que pretendia aquele cronista, Luís
Alvim não era um romântico, mas apenas um bom fornicador.
Essa rara virtude pareceu satisfazer plenamente a delicada Angélica.
Enquanto durou, encheu-a de contentamento e também alargou-a um
pouco nos quadris. Da Mata notou bem esse detalhe quando lhe abriram o
lençol onde estava embrulhado o cadáver nu.
8
Que espécie de nostalgia
formiga no ar encrespado dessas terras sedimentárias, que em névoas
pré-históricas teriam sido cobertas por águas oceânicas?
Sem dúvida, a nostalgia do calor humano das praias. De qualquer
modo, em 89 isto já era uma legítima região intertropical,
propícia às doenças e à prevaricação.
Para piorar, os hotéis andavam cheios e proliferavam os cortiços.
Mas posava de capital agrícola da província e dizem que a
febre veio por pura mandinga paulistana. Nossos concidadãos eram
tão altivos e orgulhosos que na rua se comportavam como desconhecidos
só para se darem a impressão de habitar uma cidade grande.
No estrangeiro, quando interrogados, respondiam em primeiro lugar que eram
campineiros, só depois condescendendo em declarar que eram paulistas,
e a muito custo admitindo que eram brasileiros. Com a praga republicana,
que aqui vicejou como capim, alguém chegou a lançar a idéia
de uma República dos Estados Unidos de Campinas.
9
Mal amanhece, Da Mata manda encilhar
dois cavalos. São Paulo fica longe, mas como monarquista de opinião
não sente prazer nenhum em andar de trem. E viagem de negócios
apressadinha pode levar qualquer um a fazer bobagem. Monta com dificuldade
por causa da hérnia agigantada. Angélica sai à varanda
e acena quando ele parte em companhia de um ex-escravo, Lúcio. A
luminosidade é tanta que, à distância, ambos parecem
duendes entrando numa aquarela.
10
A inveja é um sentimento
poderoso. A liberdade das cocottes e a finesse do baronato deram asas compridas
à maledicência paulistana. Punha-se gosto científico
em propalar que nossa população masculina era de predominância
homossexual. Mas isso foi mais tarde. (Não importa, para o diabo
o rigor dos fatos.) Esse mesmo estigma ligaria Campinas à sorte
de uma outra cidade brasileira, do Sul, cujo nome é melhor não
dar. Entre as duas a maledicência construiu uma estrada imaginária,
a Transviadônica, por onde agora transitam, dizem os campineiros,
pelotões de paulistanos. Da Mata ia lerdo, gozando a paisagem.