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A última viagem
Eustáquio Gomes
FEVEREIRO DE 1981. Atracado no porto
de Santos, o transatlântico Navarino, de bandeira grega, preparava-se
para fazer sua última viagem – um sossegado cruzeiro até
o arquipélago de Fernando de Noronha, na costa nordeste do Brasil
– a serviço da Karageorgis Lines. Ninguém poderia prever
que seis meses depois, na ilha de Patmos, o Navarino seria quase destruído
por um incêndio que irrompeu em sua casa de máquinas. Vendido
a outra companhia, foi reformado e transformado em navio de carga, mudando
de nome para Regent Sea. Nem assim livrou-se de bater contra um cais flutuante
e danificar-se seriamente. Em julho de 2001 foi vendido como sucata a uma
empresa indiana. Não chegou a completar a viagem de entrega: depois
de ser atacado por piratas na costa de Dacar, naufragou ao sul do cabo
da Boa Esperança, após quarenta e quatro anos de vida no
mar.
Se tivesse o poder da antevisão, como às vezes pensava que tinha, Zeferino
Vaz certamente teria evitado comprar aquelas duas passagens para Fernando
de Noronha — uma para Arlinda Rocha Camargo, a secretária-geral
da universidade que fundara e dirigira por doze anos, e outra para si mesmo.
De todo modo, nenhum dos dois embarcou. Uma semana antes da viagem, o capitão
do navio confidenciou a Zeferino sua preocupação com as condições
de desembarque no porto de Santo Antônio. O ex-reitor ofereceu-se
para ajudar. No dia seguinte, por volta da uma da tarde, de seu escritório
no campus da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, ele entrou em
contato com a administração militar do arquipélago
e informou-se minuciosamente sobre o porto e a posição exata
de fundeamento dos navios de grande tonelagem.
Ao depor o telefone no gancho, sentiu uma onda de calor e ardência no ventre.
Estava tendo um aneurisma na aorta abdominal. Arlinda, que há vinte
anos o acompanhava de um posto a outro, foi alertada por Maura, uma de
suas auxiliares. Entrou na sala e deu com o chefe, pálido, de braços
caídos ao longo da poltrona. Gritou por socorro. No andar de cima,
onde funcionava o gabinete do reitor, o rebuliço foi grande. O almoço
foi interrompido e todos se levantaram. Zeferino passando mal na Reitoria
era como o colapso do papa em Roma. Plínio, o reitor que o sucedera
no cargo, estava de viagem mas seu filho Bento, que também fazia
de secretário particular do pai, desceu correndo a escada em curva
do prédio. Encontrou Zeferino estendido no tapete, ofegante. Telefonou
para o hospital da universidade, um edifício em esqueleto onde por
ora só funcionava o pronto-socorro. Ouviu que a última ambulância
tinha acabado de deixar o pátio: o motorista costumava almoçar
em casa e levara o veículo. Bento meteu-se num Fiat 147 da Reitoria
e conseguiu interceptar a ambulância no balão de entrada do
campus. Ele e o motorista chegaram a tempo de ver Zeferino tentar recompor-se,
mas não a ponto de se pôr de pé. Baixaram a maca e
o transportaram para a ambulância. Era leve: 60 quilos proporcionais
a parcos 158 centímetros de altura. Naquela penosa circunstância,
encolhido na maca, parecia menor ainda.
A ambulância contornou o edifício da Reitoria, margeou o gramado e deixou para
trás os prédios dos institutos e faculdades, treze ao todo
naquela altura, cenário que ele havia montado, peça por peça,
a partir de 1966. Agora, sem que desconfiasse, deixava-o para sempre. Deitado
na maca, de olhos fechados mas lúcido, Zeferino tentou tranqüilizar
Arlinda, que no último instante saltara para a ambulância.
Disse-lhe que não perdesse tempo com ele. Que aquilo não
era nada. E que, chegando ao hospital, tomasse um carro e voltasse ao escritório.
Trabalho era o que não faltava. Desde que deixara o posto de reitor,
ocupava-se com organizar a fundação da universidade.
O Hospital Irmãos Penteado fica no centro de Campinas. Ali o ex-reitor já
era esperado pelo diretor da Faculdade de Ciências Médicas,
o ginecologista e obstetra José Aristodemo Pinotti. Avisado por
Bento, Pinotti colocara em alerta o cirurgião cardiovascular Renato
Terzi, que nesse dia chefiava a emergência da casa. Terzi era ex-aluno
de Zeferino. Em torno do paciente, agora, havia meia dúzia de médicos.
Enquanto discutiam os procedimentos a tomar, Zeferino, acostumado a dar
ordens, pôs em marcha o seu humor cáustico:
— Decidam
logo. Não quero ter um cadáver no colo.
Os exames
confirmaram a suspeita. O aneurisma, quando não causa morte imediata,
pode levar à perda dos sentidos ou, em alguns casos, a uma sensação
de falsa recuperação graças ao tamponamento da ruptura
pela pressão interna da aorta. Se não houver intervenção
cirúrgica imediata os órgãos vitais tendem a entrar
em colapso. Era o que Terzi explicava a um Zeferino hipotenso enquanto
o conduziam ao centro cirúrgico. A cirurgia durou duas horas e correu
bem. Presentes, além de Terzi, o cirurgião cardíaco
Valentim Baccarin, um médico-residente, o anestesista e a instrumentadora.
O aneurisma foi aberto e a aorta rompida recebeu um enxerto.
Levado para a UTI, o paciente passou
bem a noite mas logo de manhã apresentou sinais de insuficiência
respiratória. A gasometria indicou que os pulmões não
estavam oxigenando direito. Foi necessário atrelá-lo ao respirador
mecânico. Mesmo assim, pelo vidro, acenou para a filha Marly e fez
um sinal positivo para dona Yoanna, a esposa. Tinham vindo às pressas
de São Paulo no dia anterior. Sérgio e Fernando, os outros
filhos, interromperam as férias e estavam a caminho.
No segundo dia, quando se constatou que os rins tinham parado de funcionar, a família
concordou em transferi-lo para São Paulo. Os Vaz residiam lá
e era bom estar perto de casa numa hora dessas. Em Campinas, o paciente
teria de se deslocar a outros hospitais para fazer hemodiálise (o
Irmãos Penteado não contava com esse serviço), o que
seria um grande transtorno. Pelo telefone Terzi entendeu-se com o Dr. Ruy
Sevado Bevilacqua, médico do Hospital Sírio-Libanês
e da Universidade de São Paulo, um dos pioneiros da medicina intensivista
no país. Bevilacqua aceitou assumir o caso.
Mas o que se passou na capital foi uma escalada dos problemas começados
em Campinas. Além do déficit respiratório e do colapso
dos rins, Zeferino apresentou insuficiência cardiovascular e uma
gotejante hemorragia que se estendeu do local do aneurisma a toda a cavidade
abdominal. Rapidamente se caracterizou um quadro de falência múltipla
de órgãos – no caso, quatro – em que as chances de sobrevivência
diminuíam a cada hora. Se a cirurgia houvesse sido feita antes da
ruptura, isto é, preventivamente, o risco de vida seria de apenas
cinco por cento. Mas Zeferino, mesmo sendo médico (com especialidade
em parasitologia e biologia geral), nunca ia a médicos. Nos últimos
anos tornara-se esclerótico e não sabia disso. Confiava na
sua meia hora de ginástica diária e no quilômetro e
meio que fazia, antes e depois do jantar, pelos gramados do campus. Mantinha
a crença de que movimentar os dedos das mãos ativava a circulação
sangüínea. “Sou biólogo e sei que a inércia física
leva à degeneração orgânica”, dizia. E lembrava
com orgulho seus tempos de velocista do Clube Atlético Paulistano,
especialista nos 100 e 200 metros rasos, sem falar no revezamento 4x100
e 4x200, como se esses feitos de juventude o tivessem imunizado das doenças
e também, quem sabe, da morte.
Contudo ele também era humano, embora às vezes não parecesse.
Morreu às quatro da tarde de 9 de fevereiro de 1981, sete dias depois
de ter comprado as passagens para o último cruzeiro do Navarino.
Completaria 73 anos em maio.
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