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Os paramentos
Eustáquio Gomes
As mulheres tinham vindo para a
Missa do Galo, limpas, asseadas, de longe. Uma delas disse que de Estrela, Indaiá abaixo,
em oco de canoa. Os homens acharam graça. O Indaiá é
acidentado, cheio de pedras, raso aqui, estreito lá. Mesmo assim
quiseram saber onde a canoa e o canoeiro. Ao ouvir isso uma delas disparou
a rir e apertou a bochecha do negro Tião.
Vestiam saias rodadas e cheiravam
a leite-de-rosa. Eram duas. A mais nova ajeitou o cabelo ao entrar no boteco.
Os homens tinham acabado de chegar da igreja. Alguns tinham ajudado a lavar
as escadas. A outra entrou depois, séria, com uma bolsa branca debaixo
do braço.
Quando elas entraram a atmosfera
carregou-se de eletricidade. Os homens trocaram olhares. Em seguida a porta
foi baixada de um golpe e depois presa com um gancho.
Que é isso, gente? a
mais velha. Acenderam a estopa de um candeeiro. Embora fosse dia
a escuridão lá dentro era quase completa. Fora, o tempo estava
fechado. Tinha chovido desde a madrugada e ainda continuava chovendo.
Os homens rodearam as mulheres
e começaram a falar baixinho no ouvido delas.
Ofereceram conhaque, elas aceitaram.
Um deles, o mais alto, aliciava: "Então cês...". A mais nova
ria fácil, os dentes pequenos como um colar de pérolas. A
outra dava arrulhos e pedia calma, gente. Ofendeu-se& quando alguém
beliscou-a por trás, sobre os panos. Deu um salto e repreendeu a
mais nova por deixar que lhe erguessem a saia.
Não desse jeito protestou.
Devagar que o santo é
de barro a mais nova, rindo.
A outra foi para trás do
balcão e abriu a bolsa. Estipulou o preço. Os homens buscaram
a claridade para contar dinheiro. Sacavam dos bolsos o que tinham, tudo
dinheiro embolado e miúdo, uns tinham menos que outros mas no fim
elas ficaram satisfeitas com a soma. Receberam o dinheiro, que a mais velha
guardou na bolsa e correu o fecho. Chamou a mais nova e disse que iam trocar-se
atrás da coluna de engradados de cerveja. Era onde Zico se achava
acocorado.
Quando elas surgiram entre os engradados
e a árvore de Natal, Zico estremeceu. Viu quando a mais velha baixou
a saia e depois a anágua. As coxas reluziram refletidas nas bolas
de celulóide. Os seios da mais nova eram pequenos e pontudos. Quando
a mão da mais nova coruscou a cabeça de Zico e ela deu um
grito, achando que tinha tocado um bicho peludo, Zico saltou para o meio
do salão.
Ai, Jesus a mais velha. Criança
aqui não pode não. Quem deixou esse inocentinho entrar?
Inocente coisa nenhuma. Esse
aí é o Zico.
Os homens mostraram aborrecimento:
Cai fora, Zico, porra!
Subiram meia porta e o empurraram
para a rua. Às suas costas ouviu baixarem novamente a porta.
Andou às tontas, afundando
os pés em poças d'água e nem se importando. Distanciou-se
do povoado e ganhou o campo. Vagou umas três horas e quando escureceu,
não percebeu. O tempo não tinha importância. Nada tinha
importância.
Noite cerrada caminhou de volta
para casa. Do alto dos telhados partiam as linhas de bandeirolas que estavam
ali desde a festa da padroeira, drapejando ao vento.
Perto do portão soou o sino
da igreja, fanhoso porque o bronze estava rachado. Nesse momento viu o
grupo de mulheres vindo em sua direção. Eram umas oito ou
nove. Uma delas trazia uma criança de colo. As outras traziam a
si mesmas. Viu a mulher do negro Tião, a do Vigilato, a Zilá
do Bento, e as outras todas.
Ô, menino! gritaram.
Espera aí, menino!
Tinham a expressão pesada
de quem aguarda a confirmação de uma grande, irreparável
desgraça. Não fizeram rodeios: queriam saber quem tinha estado
lá, no interior do boteco, com as mulheres da vida. Queriam saber
se seus machos tinham estado lá. E ao dizer isso mordiam os lábios
de impaciência. Zico sabia os nomes, mas negou que soubesse.
Sabe sim disseram.
Sei não.
Cê estava lá.
Já disse que não
sei!
O sino ainda repicava quando Zico,
num impulso, passou por elas abrindo caminho com espadanadas de cadeiras.
As últimas verberações do sino perdiam-se ao longe
no instante em que cruzou a soleira da porta de casa e sua mãe fechou-a
com um estrondo. Já sabia de tudo. Vieram bater mas ela se recusou
a abrir. No quarto, o pai esperava-o com a cinta de couro fora das calças,
mas a mãe, cheia de autoridade, mandou-o deixar de besteira e aprontar-se
logo para a chegada do padre. Os paramentos, que tinham chegado logo de
manhã, já estavam dobrados sobre a cômoda, passados
a ferro e brilhando na sua beleza quase insuportável. Vistos de
olhos semicerrados, eram como as portas do Céu com suas faustosas
abas largas e Zico teve medo de que estivessem fechadas para ele, hoje
como ontem e sempre.
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