1973
EM QUE O ESCRIBA SOPRA BOLHAS DE
SABÃO E PELA PRIMEIRA VEZ TEM A SENSAÇÃO
DE CONFRONTAR O MUNDO
4 de fevereiro
Casamo-nos ontem. Pouca flor na
igreja (as que estavam lá eram da cerimônia anterior) e um
recato de acordo com nossa pobreza. Na porta de sua casa fomos recebidos
com chuva de arroz. Depois tomei-a pela mão e a trouxe para cá,
para esta casinha a duas quadras da sua. Ríamos como loucos quando
escapamos pela porta dos fundos. Rindo entramos portão adentro,
cruzamos o corredor e deparamos com a pequena cozinha mobiliada em vermelho.
Ao entrar senti o odor da cera no piso. Agora ela se obstina em manter
cada coisa no lugar. Os lençóis sem um grão de poeira.
Gosto disso. Sento-me na poltrona e folgo: posso pôr os pés
no sofá, agora sou livre para isso. Ouço a voz dos vizinhos
e distribuo esta sensação pelos diferentes canais da minha
nova maneira de sentir, a do homem casado e independente. Da casa da proprietária
vem um aroma de carne assada. Sinto fome. Abro O retrato de Dorian Gray,
o primeiro livro que leio em meu novo estado civil, apenas porque o ganhei
ontem de presente de casamento. Embora tenha estranhado a cama e hoje de
manhã a cabeça latejasse, posso dizer que a noite correu
bem. Nenhuma estranheza no fato de haver um corpo colado ao meu. Ao atentar
na sua respiração, observei que mantém um ritmo ligeiramente
mais acelerado que o meu. Às vezes suspira e, nesses momentos, creio
que sonha.
9 de fevereiro
Folheando cadernos de quatro anos
atrás, sou levado de volta a meus dezesseis anos. Nenhuma alegria
ao recordar aquele tempo de reclusão. Sem vocação,
sem fé verdadeira, não via a hora de ganhar o mundo. Penso
nisso com tanta intensidade que até parece que estou lá outra
vez. De repente, desperto e sinto este corpo de mulher ao meu lado. As
lembranças, trêmulas, se dissipam e batem asas como anjos
mortos. Sinto agora vontade de retroceder e mostrar a meus superiores o
que fiz de minha vida. Voltar, sim, mas com a mulher que dorme comigo.
Como seria? Ela em minha cama, naquele dormitório comprido, para
espanto geral. Não ia precisar mais das mulheres imaginárias
que cultivava naquele tempo, sempre substituídas por outras quando
me cansava de seus gestos e de seus contornos (eu abraçava fêmeas
de vento e às vezes o travesseiro), terminando tudo na mesma seqüência
esquemática: exaltação, masturbação,
remorso, confissão, reincidência. Sim, eles iam se espantar
muito da mulher que o futuro me deu. Isso me dá a sensação
de que, ao confrontar o mundo e medir-me com ele, eu superei o mundo.
17 de março
Manhã. Um sol louro invade
a cozinha. Ela ordena as coisas, limpa os móveis, livra a mesa dos
restos do café-da-manhã. Levantamos tardíssimo, mas
afinal é sábado. Ela se aproxima por trás da cadeira,
me abraça, me afaga o rosto, procura ler o que escrevo. Confessa
que todos os dias mexe neste diário. Tomou conta de mim, me absorveu,
fui dominado. E no entanto é uma menina, tem riso de menina e ama
os gatos como uma menina ama os gatos.
25 de março
Calma e poesia. Sopramos bolhas
de sabão no quintal de seu pai. Depois o “velho” e eu batemos bola
entre os limoeiros, enquanto ela continua a soprar bolhas e Joãozinho,
seu primo, recorta papel e cruza as varetas de uma nova pipa.
10 de abril
Alguém arrasta as chinelas
pelo apartamento vago:
sumido o seu rosto magro
à luz dançante das
velas.
Por vez o fogo dançante
em cabalística farra
projetava a apavorante
sombra duma cimitarra.
11 de maio
Ao ouvir o lamento de três
gatinhos abandonados num terreno vizinho à casa de meus pais, ela
me pede que os resgate. Escalo o muro e salto para o outro lado. Um garoto
aparece misteriosamente com uma caixa de sapatos. Seguimos em cortejo triunfante
em direção à nossa casinha, ela, o menino e eu com
os gatinhos, que, parecendo compreender, calam-se e adormecem dentro da
caixa.
8 de setembro
A casa é diminuta, quarto,
sala, cozinha. O banheiro fica fora, entre o tanque e a casa da proprietária.
Quando um de nós sai para escovar os dentes ou ir ao banheiro, a
porta tem de ser fechada por causa da corrente de ar. O muro alto que acompanha
a casa da frente, verdadeiro paredão que nem o portão de
madeira detém, canaliza esse vento para cá. Se na rua é
fraco e esparso, no corredor junta forças e chega aqui cheio de
ímpeto. À noite Vera tem medo dos lamentos que ele produz
em seus atritos com o muro. Lembram-lhe alma penada.